Meus dias costumam ser
preenchidos pelas mais tenebrosas histórias contadas pelos pacientes. Violência.
Abuso. Negligência. Pobreza. A cada consulta, uma nova desgraça. Um pequeno pedaço
de mim que morre ao ser lembrado da crueldade do mundo.
Mas às
vezes, muito raro, o amor vence tudo isso. Contra todas as probabilidades,
desgraças e desavenças do mundo, o amor vem me lembrar de que ainda há beleza
no universo.
Dona
Violeta entra na sala de cabeça baixa e senta na cadeira destinada aos
pacientes. Veste uma bermuda jeans e uma blusa rosa, suas sandálias têm flores
bordadas. Somos eu e mais diversos alunos para iniciar a consulta, é sua
primeira vez em um consultório psiquiátrico. Começamos com a pergunta de praxe:
o que trouxe a senhora aqui hoje?
Ela
começa a nos contar, com seu sotaque nordestino, que há seis anos perdeu seu
filho e desde então não dorme direito. No início conseguia contornar, muito
mal, com medicamentos fitoterápicos além de outras coisas naturais como chá de
camomila. Mas há dois anos, quando seus sintomas pioraram, procurou seu médico
que lhe receitou Diazepam 2 mg todo dia para dormir. Atualmente só adormece
quando toma pelo menos meio, e as vezes um inteiro, do remédio.
Pedimos
então para que ela nos conte sobre a morte do filho. Ela diz que teve três
filhos, dois gêmeos e uma menina. O pai a abandou há muitos anos e ela veio
para o Rio junto com eles, trabalhar para dar a todos uma vida melhor. Sempre foram
uma família unida. Quando fez 18 anos Miguel, um dos gêmeos, decidiu sair de
casa para viver sozinho. “Vocês não têm que se meter na minha vida! ” Ela
repete diversas vezes como sendo a justificativa dele. Foi morar na Lapa junto
a uma cafetina. Começou então um processo de modificação do seu corpo: raspou a
barba e pelos do abdômen, injetou silicone industrial nas pernas e bunda, nos
peitos colocou silicone com um cirurgião. Ela nos conta isso com calma, sem
alterar seu tom de voz.
Incrédulos,
perguntamos se isso foi difícil para ela. Ela nos responde que fácil não foi,
mas era seu filho e ela o amava do jeito que era. Seu atual marido, padrasto
dos meninos, teve maior dificuldade de aceitação. Ela diz que conversou com
ele, afinal era seu filho e se fosse para escolher era obvio quem preferiria.
No final, todos se acertaram, do jeito que eram.
Em uma das visitas Carlos, o
outro gêmeo, sinalizou para a mãe o inchaço em uma das pernas do irmão. Ela,
preocupada, ao tocar na perna de Miguel percebeu que estava fervendo de quente,
além de muito vermelha e dolorida. Começou então uma militância pela saúde do
filho. Alertou diversas vezes sobre a colocação de silicone industrial no
corpo, pratica ilegal, e que ele deveria ir ao médico avaliar aquilo. Foram
meses de convencimento até conseguir leva-lo a um hospital. Lá o avaliaram e
marcaram a retirada cirúrgica do silicone na perna inflamada.
Nesse meio tempo ela o convenceu
a retornar para casa, não para seu controle, mas para auxiliá-lo com sua saúde.
Foi a diversas consultas medicas com ele, sempre que podia nas folgas do
trabalho. No dia da internação para a retirada do silicone industrial, ela
estava trabalhando então não pode acompanhá-lo. Ele não foi. Em vez disso
voltou para a casa da cafetina na Lapa, ela nos conta com voz de tristeza. Lá
votou a se prostituir e a colocar mais silicone nas pernas, “se sentia mais
bonito assim”.
Meses se passaram e a saúde
Miguel, que agora se chamava Michaela, deteriorava. Pegou um resfriado leve,
mas nunca se curou. Tossia todos os dias, constantemente, sua voz agora rouca
pela grande quantidade de secreção. Já não visitava mais a mãe alegando falta
de tempo e dinheiro para a passagem. Com saudades do filho, Dona Violeta se
encheu de coragem e foi visita-lo na casa da cafetina na Lapa. Chegando lá,
quase não reconheceu seu próprio filho. Estava magro, com a pele acinzentada,
mal conseguia falar pela falta de ar. Sequer se levantou para cumprimentar a
mãe, pois não tinha forças.
Desesperada, ignorou as negações
do filho e o colocou em um taxi com destino ao hospital mais próximo. Lá foi
prontamente internado, estava com um quadro grave de tuberculose pulmonar. Por
medidas de segurança não deixaram Dona Violeta permanecer muito tempo próxima
ao filho, por mais que pedisse e implorasse a todos os funcionários do
hospital. Três dias depois quando foi visita-lo, recebeu a notícia de que havia
falecido durante a madrugada.
Ela nos conta que constantemente
revê em sua mente a cena do filho magro, internado, com a máscara de oxigênio
no rosto e ainda assim dificuldade para respirar. Só em nos contar Dona Violeta
treme e diz sentir o coração doer, junto com um grande aperto na garganta. O
mesmo que senti durante toda sua história.
Perguntamos então sobre outras
coisas de sua vida, o trabalho, planos para o futuro e como está a família
depois desse evento. Ela diz que se voltou a estudar para completar o ensino
médio e ano que vem pretende cursar enfermagem. “Gosto muito de cuidar das
pessoas. Trabalho na casa de um casal de idosos e me ajuda muito a ocupar a
cabeça.” Diz que evita ao máximo ficar sozinha, pois senão lembra do filho.
Conta também ter muito medo de perder o outro gêmeo, que agora está com pedra
no rim. “Ele ficou muito mal depois que o irmão morreu, toma quatro remédios
para depressão”. Questiono se ele faz terapia, afirmando que um tratamento não
funciona sem o outro, ela diz que foi a uma sessão e nunca mais voltou.
A essa altura nosso professor, o
psiquiatra, já havia entrado na sala e esperava acabarmos de colher os dados
para repassá-los a ele. Contamos a história de forma resumida, relatando a ele
o sofrimento de Dona Violeta. Ele então a questiona sobre seu apetite, e se
sente culpa pela morte do filho. Ela afirma que sim, pois pensa que talvez de
alguma forma poderia ter mudado o seu destino. Ele discute com ela sua
medicação, a necessidade de mirarem a suspensão do Diazepam pela forte
dependência associada ao seu uso, e adiciona Escitalopram para tratar de forma adequada
o seu quadro.
Termina a consulta com uma
conversa com Dona Violeta, sobre sua culpa. Infelizmente não podemos controlar
as ações de nossos filhos após adultos, apenas aconselhá-los a fazer o que
consideramos melhor. E isso, ela havia feito, da melhor forma possível. Ela
concorda. Ao sair do consultório cumprimenta a todos nós de forma carinhosa,
agradecendo pela atenção. Após sua partida discutimos seu provável diagnóstico,
Transtorno do Estresse Pós Traumático, elogiamos sua força como mãe e partimos
para o próximo paciente.
Nesse momento saio da sala para
ir ao banheiro, encontrando Dona Violeta sentada na cantina bebendo uma água.
Questiono se ela está melhor após ter partilhado sua história conosco, ela
afirma que sim com um sorriso no rosto e me convida para sentar ao lado dela
para conversar rapidamente. Puxo uma cadeira e me ponho a escutar. Ela conta
que seu outro filho, Carlos, é HIV positivo há alguns anos. Diz ter ficado sem
graça de falar sobre isso na frente de tantos alunos, por mais que tenha gostado
de todos nós.
Carlos, na verdade, fora junto
com Miguel quando ele saiu de casa. Após a morte do irmão ela, vendo como seu
filho havia ficado deprimido com a perda, o convenceu a voltar e morar em um
pequeno quarto que havia no andar de cima de sua casa. “Assim ele tem a
privacidade dele, mas continua próximo a mim”. Ela diz que o filho toma muitos
remédios, somando o coquetel e os medicamentos para depressão, e se sentiu
muito mal no início do tratamento. Eu afirmo a ela que é assim mesmo, são
remédios muito pesados, mas que o ajudarão a ter uma vida melhor e mais longa.
Ela conta que ele a pede para chamá-lo
de Bia, e não mais seu nome de batismo. Afirma que o chama de Bianca pois acha
mais bonito. Questiono se ele tem o hábito se usar roupas femininas, ela diz
que sim. Saio então do meu lugar de estudante de medicina, e como humana,
começo a elogiá-la. Pelo seu grande amor e aceitação dos filhos, pela sua garra
como mãe. Pelo ser incrível que senta na minha frente, dotada de uma
sensibilidade e inteligência anos luz de seu tempo e idade. Ela rí sem graça e
me responde que são seus filhos, que outra opção tem senão amá-los?
Sua irmã constantemente fala que
é coisa do demônio chamar homem com nome de mulher, e permitir esse nível de
perversão na sua casa. Eu digo que não sou religiosa, mas pelo pouco que
conheço Jesus nos ensinou a amar uns aos outros, sem restrições de grupo. Ela
concorda e que pecado é ter filho que mata, rouba, estupra. “Ele não faz mal a
ninguém, doutora. Vai da casa para o trabalho, do trabalho para casa. Não me dá
nenhum problema. O que custa chamar ele de Bianca? Julgamento quem tem que
fazer é Deus, eu só posso amar o meu filho e aceitar ele do jeito que ele é.”
Com lágrimas nos olhos eu
concordo com ela, dizendo que está coberta de razão. Convido a ambos para virem
a uma roda de conversa comunitária quando puderem, pois seria bom ter Bianca se
tratando junto a mãe. Me despeço com o coração aquecido, dizendo que preciso
voltar para as consultas. Ela me agradece pela atenção e diz que tentará trazer
seu filho.
Passo o resto do dia com a
certeza de que mundo precisa de mais Violetas. Para colorir todo esse cinza que
embaça as nossas vistas e nos faz esquecer algo tão fundamental: amar uns aos
outros do jeito que são. Sem restrições.