quarta-feira, 6 de abril de 2016

                               T. e F. entram no consultório de cabeça baixa. T. tem 30 anos e F. 15. Ambas com a pele cor de avelã e os cabelos negros e longos cobrindo o rosto. Poderiam ser irmãs, mas são mãe e filha. Sentam uma ao lado da outra na minha frente, T. agora olha para mim como quem teve o coração partido, F. continua encolhida e com a cabeça baixa, mal ocupa espaço na cadeira.
Pergunto como chegaram até mim e a terapia de família, T. diz que foi encaminhada pelo juiz da vara de família e me entrega uma folha com o resumo do seu caso. Leio e evito olhar para cima, controlando minha respiração e minhas emoções. Essa vai ser uma consulta longa. Devolvo o papel e peço para me contar desde o inicio.
A partir desse momento as historias de mãe e filha se entrelaçam ao ponto de se confundirem. Além da obvia participação de uma na vida da outra, há quase a repetição de um padrão. Como se o presente fosse uma mera reprodução do passado. Contarei em ordem cronológica apenas para facilitar a compreensão.
T. conta de uma infância humilde em uma pequena cidade próxima a Manaus. Tem muitos irmãos, homens e mulheres, os quais foram todos criados pela mãe. O pai, alcoólatra, ela comenta que saiu de casa quando ainda era nova. Não sabe dizer nada além disso sobre ele.
Diz que desde cedo ajudava com as tarefas da casa, e mesmo não sendo a mais velha constantemente ficava responsável pelos irmãos quando a mãe se ausentava. “Não sei porque, dotôra, acho que eu era a mais responsável, mesmo sendo nova. ”. Conta com pesar sobre as surras dadas pela mãe, sempre piores nas meninas que nos meninos, e ainda mais severas com ela.
Aos 10 anos decidiu sair de casa. Seu sonho era trabalhar em casa de família; terias as mesmas tarefas com as quais já estava habituada, mas agora com a chance de independência e longe das surras da mãe. Pegou um ônibus e foi até onde conseguiu, mas logo a encontraram. Diz que nunca apanhou tanto na sua vida quanto naquele dia.
Passados alguns meses dois homens batem à sua porta, dizendo que estavam lá para levar ela e a irmã para uma casa de família. Ela sentiu o coração palpitar e logo estava na porta com a mala pronta. Era a sua chance de sair de casa e realizar um sonho. A irmã chorou e esperneou até desistirem de leva-la. Diz lembrar de fazer uma viagem longa de carro, e que os homens se recusavam a responder quaisquer das suas perguntas de criança ansiosa. Apenas a mandavam ficar quieta.
Quando finalmente chegaram ao destino, sua casa de família havia se transformado em algo bem diferente. Eram diversos quartos, pequenos, enfileirados um ao lado do outro e unidos por um corredor. As meninas que trabalhavam lá eram um pouco mais velhas, todas com pouca roupa no corpo. “Elas vão te explicar como funciona, amanhã você começa.”. T. ainda tinha 10 anos.
Pela noite as outras meninas, assustadas com a idade da criança entre elas, a ajudaram a fugir. Passou algumas semanas dormindo na rua e contando com a caridade de estranhos para sobreviver. Um dia ela diz ter pedido um copo d’água a um senhor, que então a ofereceu um emprego e lugar para morar. Era um advogado, pai de duas crianças pequenas e com a necessidade de alguém para ajudar sua esposa nas tarefas caseiras. Ela conta que nunca foi tão feliz.
Após aproximadamente 3 meses trabalhando nessa casa, seu patrão diz que vai leva-la para sua mãe. Tinha escutado no rádio o pedido de uma mulher procurando por sua filha, perdida, e pela descrição com certeza era T. Ela pediu, implorou, mas ele por medo das implicações legais de ter uma menina desaparecida menor de idade trabalhando em sua casa, a levou mesmo assim. Chorou todo o caminho de volta.
O retorno para casa foi pior que da primeira vez. A mãe, cansada da rebeldia da pré-adolescente, a abarrotava de tarefas e afazeres. Seus irmãos agora não faziam mais quase nada, apenas ela cuidava das coisas. As surras também haviam piorado. Tentou procurar o pai, mas, sem sucesso, decidiu mais uma vez fugir de casa. Mesmo que morasse na rua, lá ela não ficava mais.
Então, aos 11 anos, ela se tornou mais uma criança na rua. Conta com profunda vergonha das coisas que fez para tentar sobreviver; diz que até teve que se prostituir e me pede desculpas pelas coisas que está contando. Respondo que não há nada de vergonhoso em nisso, pois ela fez o que precisava para sobreviver. Logo, nada de me pedir desculpas. Volto minha atenção rapidamente a F. e pergunto se ela sabia dessas coisas, ela apenas balança a cabeça negativamente. Ainda não conheço o som da sua voz.
Aos 12 anos ela me diz ter descoberto o amor. Era outro menino morador de rua, um pouco mais velho. “Com ele eu me descobri mulher, me entreguei inteira” ela diz enterrando o rosto entre as mãos. O resultado do amor da adolescência nesse caso não foge muito do esperado. T. engravidou e o então amor de sua vida logo desapareceu.
Sem opções, gravida aos 13 anos, ela bate na porta da mãe pedindo ajuda. Essa lhe responde dizendo que era isso mesmo que ela merecia por ter fugido de casa para virar vagabunda na rua. Após longos pedidos e horas implorando, a mãe a aceita de volta. Mas com a condição de pagar pelo próprio sustento.
A partir desse momento, e durante todo resto de sua gravidez, sua mãe a aliciou. Um cliente após o outro, ela pagou com o corpo o sustento para a própria mãe. Seu bebe nasceu prematuro e, infelizmente, não sobreviveu. T. nunca mais voltou para casa depois da alta no hospital.
Com então 14 anos ela se viu na mesma situação que parecia ser seu destino: moradora de rua, fazendo o possível para sobreviver. Após alguns meses, em um abrigo, ela conhece uma mulher e seu filho, um menino de 12 anos. Ouvindo a história de T. essa senhora se comove e faz uma proposta: casar-se com seu filho para assim tornarem-se uma família e tentarem sair daquela situação juntos.
T. diz ter achado a senhora louca, como que ela com 14 anos iria se casar com o menino de 12? Mas, levada pela falta de melhores opções, ela aceitou. Assim se passaram 15 anos, e após 3 filhos, dois meninos e a menina mais velha, ela está sentada no meu consultório, pronta para contar a história de sua filha.
Nenhuma das duas sabe me precisar uma data de início, mas ambas concordam com a idade: começou quando F. tinha 13 anos. T. se recorda de uma viagem que fez, para visitar os parentes em Manaus, na qual pretendia levar a filha junto. O pai então, preocupado com seus estudos, disse que seria melhor a menina ficar em casa com ele e assim não perder aulas na escola. Ambas, seguindo a lógica racional, concordaram. Era seu pai, além de assim F. poder ajudar a cuidar dos irmãos. T. lembra com lágrimas correndo pelo rosto de perceber a filha diferente ao voltar.
Pergunto se durante esses anos T. suspeitou de algo, ela me responde não com toda culpa que essa pequena palavra pode carregar. Diz que suas vizinhas a alertavam, mas nunca sobre algo concreto. Falavam do ciúme excessivo do pai com a filha, “algo meio homem e mulher”, e sobre as roupas provocantes com as quais ele constantemente a presenteava.
Porém, toda vez que qualquer falatório se iniciava, ou quando a menina conseguia fazer amigos, eles se mudavam. Sempre haviam razões e explicações, normalmente relacionadas a emprego, então T. aceitava sem muito questionar. Diz que para não dar atenção aos boatos, se concentrou no trabalho. Aumentou sua renda, mas diminuiu seu tempo em casa. Como se fugisse de algo lá.
Enquanto isso, F. se tornava uma menina reclusa. Além das constantes proibições do pai em relação as suas amigas, ou qualquer um que se aproximasse, ela cada vez menos falava. Começou a ir mal na escola, repetiu então duas séries. Pergunto porque ia mal nas matérias naquela época, ela me responde que não conseguia se concentrar. Digo que realmente deveria ser muito difícil se concentrar com tudo que acontecia. Ela consente com a cabeça.
T. diz que F. tentou procurar ajuda algumas vezes, mas que infelizmente ela não entendia. Nos dias de folga do pai, às segundas como a própria filha enfatiza, constantemente pedia para ir ao trabalho junto à mãe. Sem saber o porquê daquilo, e dizendo que ela deveria ficar em casa para ajudar o pai com o almoço, sua mãe constantemente negava o pedido. Pergunto se era nesses dias que acontecia, quando eles estavam sozinhos em casa sem a mãe ou os irmãos, ela consente com a cabeça enquanto chora calada.

Esse ciclo se repetiu durante 2 anos. As mudanças, a reclusão da filha, a negação da mãe, o abuso sexual feito pelo pai. Até que em janeiro desse ano, a menina finalmente rompeu o silêncio. Não com a mãe, mas com uma amiga e confidente de ambas. A partir da abertura dessa caixa de pandora, tudo na vida das duas mudou. E o fato de que sou capaz de reproduzir essa história é talvez uma das maiores provas disso.